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quinta-feira, 1 de maio de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 5º porto: Bananal, as trilhas e os trilhos

Olá!

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Quinta estação: Bananal tem mais a ver com trens do que todos os outros lugares por onde andamos. É bem verdade que Queluz (devidamente romanceada aqui) tem uma linha férrea ativa, mas o trem diz muito mais neste recanto. Chegaremos lá.
Primeiramente, alguns pontos sobre a continuidade de nossa viagem. Começamos pela precitada Queluz, pendemos para a direita em Silveiras, para a esquerda em Areias e daí para Arapeí. A continuação lógica seria São José do Barreiro, mas a minha cabeça nem sempre funciona em uma lógica canônica. Desta forma, seguimos para a última cidade do destino, a agora narrada Bananal, para depois voltar à dita cuja.

De todas as cidades visitadas, Bananal é a maior, tanto territorialmente quanto demograficamente, e tem lá seus 13.000 habitantes. É uma cidade de passado glorioso, um dos principais centros produtores do 1º ciclo do café, no momento em que essa era a principal cultura agrícola do Brasil. Por lá, existem várias fazendas que retratam essa época de apogeu.
Uma das provas da antiga situação do município é a maneira como está estruturado o centro da cidade. Em geral, encontramos uma grande praça onde está instalada a igreja matriz da cidade. Algumas outras capelas são encontradas em outros lugarejos. Mas, no caso de Bananal, encontramos três igrejas de bom porte, todas bastante próximas. Temos, obviamente, a tal da Matriz (Senhor Bom Jesus do Livramento)...

... com sua respectiva praça e coreto...


... a igreja do Rosário, com a praça fazendo as vezes de adro...


... e a igreja da Boa Morte, colocada em um morro. Na foto abaixo, temos uma imagem de Nossa Senhora da Boa Morte, instalada ao lado do edifício da igreja.


Sem dúvida, Bananal tem um diferencial muito legal. A ocupação de seus espaços públicos é abundante. As pessoas encontram-se aos montes nos locais públicos, principalmente nas praças, deixando um pouco a TV e a internet de lado. O resultado, na praça da Matriz, é esse:
E na praça do fórum também. Informo que fotografei ambas com pouca diferença de tempo. Percebam que não só os tradicionais velhinhos, mas muitos jovens estudantes também.


Em termos arquitetônicos, a cidade conserva muita história. A quantidade de belos prédios é muito significativa. Predominam os sobradões e outras edificações de bela feitura e marcantes da época de seu auge...


... a maioria em bom estado de conservação, ou em processo de recuperação, como é o caso do hotel abaixo:

Uma observação interessante: mesmo nas casas mais simples, havia o costume de se armar de maneira diferente as janelas com relação ao que estamos acostumados hoje em dia. A vidraçaria das janelas ficava exposta para a rua, enquanto as venezianas ficavam voltadas para o lado de dentro, para onde eram pivotadas.


As construções típicas eram feitas em taipa de mão ou de pilão, ou então com adobe, um tipo de tijolo rudimentar em que era colocada palha na composição, para torná-lo mais leve. Encontramos uma construção em pleno processo de troca destes últimos. Estão sendo substituídos por tijolos baianos. Dá para compreender bem a diferença entre ambos.


A cidade era tida como a “capital” daquela região. Para lá acorriam as mercadorias a serem despachadas para o Rio de Janeiro, e também de lá havia alguma facilidade em chegar ao porto de Paraty, por onde eram escoadas as mercadorias vindas de Minas Gerais. Isso tudo fez com que Bananal dispusesse de uma série de benesses públicas, como o fato de ser sede de comarca (ainda o é, mas hoje em dia isso tem um significado muito menor). Abaixo, o belíssimo prédio do fórum:


Mas é ao observar os resquícios de sua antiga condição de rota ferroviária que percebemos o quanto Bananal perdeu de sua pujança. As composições, outrora utilizadas para o transporte das sacas de café, não foram substituídas em sua utilidade para outros fins. O resultado final é este estranho réquiem, uma placa “comemorativa” do encerramento das atividades da linha férrea.


Locomotivas como esta abaixo, bem conservada, eram utilizadas em profusão. Mas não foi só a decadência do café que as levou deste lugar. Também a estranha substituição dos trilhos pelas rodovias contribuiu para a extinção deste ramal. No caso, a Via Dutra. Além disso, os trens tinham a bitola mais estreita do que a linha da Central, o que obrigava a transferência de toda a carga para outros trens. Depois a gente fala mal dos portugueses...

A gare permanece lá, um pouco judiada pelos pichadores, mas estruturalmente perfeita. Ela é feita em placas de metal (deve ser quente à beça lá dentro), facilmente desmontáveis, e foi trazida da Bélgica. É um tanto incomum, principalmente se comparada a outras estações espalhadas pelo país afora. Mas o próprio fato de que uma estrutura removível, que poderia facilmente ser transportada e utilizada em outro local, ter ficado estocada como bugiganga inútil (posteriormente transformado, graças a Deus, em patrimônio histórico), dá a devida dimensão de como o transporte ferroviário foi deixado de lado no Brasil.


Com a decadência econômica, veio o consequente empobrecimento dos munícipes. Conversamos com a Lia, proprietária da Pousada Trilha do Ouro, onde ficamos hospedados, e ela nos contou que já há algum tempo a cidade vem enfrentando problemas com tráfico de drogas, coisa incomum nas cidades da região, vindo principalmente de Barra Mansa, e que acabam por ocupar os jovens que não têm muitos caminhos para obter renda. Triste. Já vimos essa história.
Para tentar evitar o pior, os bananalenses procuram alternativas para a sobrevivência da cidade. Uma das opções foi o comércio de artesanato, como nas demais cidades da região. Aqui, encontramos algumas novidades, como a confecção de peças em barbante e linha, além dos artigos de madeira e de palha. Também existem as negras namoradeiras em profusão. Quase toda casa tem pelo menos uma delas (nós agora também temos a nossa).

Outro caminho é a preservação do patrimônio histórico. Uma das edificações mais antigas e bem conservadas é a Pharmacia Popular. Infelizmente, estava fechada quando de nossa visita, e não pudemos conhecer seu interior, mas guarda um dos mais importantes acervos farmacêuticos do Brasil, com material de embalagens, instrumentos e movelaria do século XIX.


Mas é no turismo ecológico que residem as melhores chances de reavivamento da cidade. Como é comum em todo esse espaço, há uma natureza privilegiada, com água em abundância e capacidade ociosa nas várias fazendas existentes. História e biologia unidas. Conhecemos o Recanto da Cachoeira, que fica próxima às nascentes do Rio do Turvo, área bem cuidada e equipada pelo Luiz Carlos, um ex-operário da CSN, em Volta Redonda. Ele resolveu instalar algumas benfeitorias sem adulterar a paisagem local.


O resultado é um bom modelo a seguir. A água é limpa e gelada, o ambiente é suficientemente seguro e garante um passeio bem bacana.


Na flor d’água, ficamos só com o pescoço para fora. Mas há um remanso para as crianças menores. O fundo do terreno é meio irregular e cheio de pedras. Ao se subir pelo leito, o Luiz Carlos nos contou que é possível chegar a trilhas por dentro da mata que, com muito fôlego e equipamento, permite ao andarilho chegar a Angra dos Reis. Claro que é uma caminhada de dias, e meu ânimo não estava para tanto. Mas não deixa de ser uma possibilidade.


Se os proprietários e o poder público tiverem o devido cuidado, entendo ser possível explorar o ambiente sem violentá-lo. Segundo o Luiz Carlos, é preciso conscientizar os visitantes de que tudo o que é encontrado nesse meio faz parte integrante dele, e que não é preciso retirar “lembranças” e não ter nenhum tipo de medo de bichinhos que tem sua função natural, como esse simpático lagarto, comedor de insetos e regulador da fauna.


Podemos dizer que Bananal decaiu porque quis? Não. Podemos dizer que foi vítima das circunstâncias? Sim.
Eu sou eu e minhas circunstâncias. A frase é de José Ortega y Gasset, filósofo existencialista espanhol. Em seus pensamentos, o indivíduo nunca pode se dissociar de sua história e de tudo o que o cerca, ou seja, de suas circunstâncias. Para Gasset, há imprecisão no modo de ver o mundo que tinham os realistas, para quem o principal responsável pelo conhecimento é o objeto; e também o problema é o mesmo para os idealistas, que viam o sujeito como a principal instância do saber. Então Gasset conclui que a razão humana (sujeito) é um operador que dá formato ao objeto que é por ela apropriado. Não se pode impor um isolamento entre ambos, porque eles “doam” características um para o outro, simbioticamente.

Nesse sentido, pode-se afirmar que Ortega y Gasset é um racionalista, mas de um gênero diferente do convencional. Por exemplo, há uma discordância entre o modo como ele e Descartes propõem o conhecimento. Descartes indica com o cogito que não há como duvidar da própria existência e nem da existência de um mundo exterior. Gasset não acha possível o conhecimento se fizermos esse isolamento. A realidade objetiva é a capacidade humana de sincronizar sua razão com os fatos históricos. Não há como olhar o homem unicamente como um ponto solitário, é preciso compreender que cada exemplar da espécie possui circunstâncias diferentes, que moldam seu ser e o inserem dentro de determinados limites. Como temos nós mesmos nossas próprias circunstâncias, temos maior ou menor dificuldade de alcançar os fundamentos que estão no objeto que queremos analisar, em especial se for outra coisa dotada de vida.
Ortega y Gasset cria uma escola que ficaria conhecida como raciovitalismo. Do racionalismo, traz a capacidade da mente humana em buscar e adquirir o conhecimento. Do vitalismo, não traz as limitações impostas pelas leis orgânicas, mas a própria questão de que as circunstâncias e acontecimentos são desdobramentos da própria vida. Desta forma, a razão vital busca alcançar o conhecimento quando há algum estranhamento voltado a algo que acontece na vida, que clama por compreensão. Estes problemas são característicos das culturas e das civilizações, estão sempre a colocar questionamentos filosóficos.

As circunstâncias, assim como os homens, são históricas e mutáveis, e modificam o sujeito que está no centro de sua órbita. Lembramos que as cidades são compostas de homens, são também sujeitos e objetos, as viradas de suas circunstâncias também as moldam e estão no substrato do que elas são. Bananal teve mexidas muito grandes em suas circunstâncias. Deixou de ser o que era, vanguardista, pujante. Passou a ser uma cidade lenta, parou de crescer e de ter relevância. Colidiu com o seu futuro, como diria Gasset. Com certeza, todos os projetos que Bananal poderia ter tido em seu passado glorioso vislumbravam um crescimento ainda maior. Mas estava lá ela, a História, prontinha para engolir seus sonhos. A vida obriga hoje Bananal a se reescrever, como acontece com tudo o que vive nesse universo. Não pode parar, novos sonhos vêm e novas circunstâncias vão voltar a se misturar e se modificar. Tem que continuar carregando sua energia vital, até porque não foi vítima de nenhum cataclismo, e possui recursos suficientes para se manter tão bela quanto ainda é.
Recomendação de leitura:
Ortega y Gasset reergueu a Filosofia na Espanha. Absorveu influências da fenomenologia, mas as utilizou de maneira original. Recomendo o livro abaixo para quem queira se aprofundar em seu pensamento.

ORTEGA Y GASSET, José. Meditações de Quixote. Rio de Janeiro: Ibero Americana, 1967.

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