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terça-feira, 17 de abril de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (04 - Teoria do conhecimento)

Olá!


Antes de começar a elaboração de qualquer texto, é de bom tom que se faça algum roteiro básico de escrita. É muito raro que eu saia digitando ao correr da pena. Isso me parece método mais apropriado para os poetas e, como não tenho intenções líricas, é natural que eu pense um pouco antes de desenvolver a tese em si. Acontece que no começo da presente faina, eu travei. Isso porque, mesmo no mundo acadêmico, que busca ser metódico e padronizado, nem sempre é fácil obter consenso. E este é o problema que encontrei ao começar a descrever o tema em referência: o conhecimento.


Ora encontra-se uma sinonímia entre os termos, ora encontra-se distinção, ora encontra-se um grande guarda-chuva que cobre a si mesmo e aos outros. Optei pelo caminho mais pedregoso e tratarei de cada um deles isoladamente, até mesmo para espantar a preguiça. Vou iniciar apresentando um esqueminha básico da tese que adotarei:


Desta forma, a Teoria do Conhecimento é a área da Filosofia que aborda o conhecimento humano e pode ser dividida em duas partes: a Gnosiologia, que trata do ato cognitivo em si; e a Epistemologia, que cuida da verificabilidade do valor do ato cognitivo. Tudo isso costurado pela ferramenta de correspondência e coerência cognitiva chamada de Lógica. Vamos erguer as velas.

O ato cognitivo sempre foi uma característica absolutamente diferenciadora do gênero humano. Sim, os animais também têm a capacidade de apreender a realidade que os rodeia, em maior ou menor grau, mas a capacidade de realizar abstrações significativas faz parte do equipamento mental dos bípedes implumes. A maior mostra disso se dá no uso de símbolos, altamente sofisticado na espécie e que se dá de maneira recursiva: há o símbolo, o símbolo do símbolo, o símbolo do símbolo do símbolo e assim por diante. Dou um exemplo neste texto. Essa característica faz com que fujamos do mundo concreto da mera percepção e que lancemos perguntas do tipo “por que as coisas são como são?”.

Falei sobre a curiosidade humana no texto inaugural deste empreendimento, e ela é o propulsor do conhecimento. Basta que se observe o comportamento das crianças. Todas elas passam por aquela famosa fase das perguntas seriadas e inconvenientes, levadas ad nauseam. Não sejam impacientes com seus rebentos, eles estão apenas exercendo seu ofício de seres humanos. O mundo é pleno de informações com as quais os fedelhos ainda estão aprendendo a lidar.

Mas, na essência, o que é esse tal de conhecimento? O próprio estudo da etimologia da palavra já pode nos dar algumas dicas. A palavra conhecer vem do latim cognoscere, que, por sua vez, é a fusão de dois termos de origem grega: co, que significa com, junto; e gnomé, que dá a ideia de noção, entendimento. Portanto, conhecer significa ter noção, ter compreensão. Entendemos alguma coisa quando vinculamos aquilo que observamos a algum significado. Esse processo é absolutamente natural em nossas mentes. Sempre que nos é apresentado algo com o que não conseguimos fechar a cadeia intelectiva, temos aquela sensação de estranhamento tão frequente nas crianças. É a busca pela noção, pelo entendimento, pelo conhecimento.

Era de se esperar que, tendo essa sanha em conhecer, o homem passasse a procurar explicações sobre o próprio conhecimento, e isso foi a mola que impulsionou toda uma gama de pesquisas que veio culminar com as neurociências. De fato, o cérebro é mesmo uma coisa prodigiosa. Ele tem a capacidade de perceber um determinado fenômeno e disparar uma longa sequência de impulsos para resgatar algo igual ou semelhante na memória. Quando não consegue fazê-lo, absorve a informação nova e grava uma imagem mental desta (ou vai sofrer uma dissonância cognitiva, mas esse tema só vai atrapalhar no momento). A partir daí, há a formação de uma ideia. Já não é com a concreção pura que lidamos, mas com a ideia que fazemos do objeto concreto. A partir daí, todas as vezes em que um juízo for construído, esta imagem mental substituirá o objeto concreto. Essa usina permanente de associações se alarga cada vez mais, de forma a se formarem faculdades ainda mais amplas: os conceitos, representações imateriais da realidade que nos dão noção do tempo e do lugar de cada um dos fenômenos. Isso permite ao pensamento articular conteúdos não presentes, o que é o nascedouro da abstração; esta última, por sua vez, permite ao ser humano algo incrível: estruturar possibilidades. Para imaginar um novo aparelho, uma nova propriedade química, um novo tratamento médico ou seja lá o que for, não é preciso que a coisa exista (até mesmo porque, do contrário, a coisa não seria nova), mas que se tenha a capacidade de juntar lé com cré e notar que eles tem um nexo entre si. Digamos que lé seja o vento e cré seja a vela. Um belo dia, alguém percebeu que o vento tem a capacidade de empurrar objetos. Ok, que brilhante. Essa mesma pessoa percebeu também que os tecidos têm flexibilidade e resistência suficiente para serem arrancados do varal. Por quem? Sim, por ele, o lé, o vento. E daí a estruturação do pensamento fez a esse primevo nauta elucubrar que, se o tecido fosse suficientemente grande e eficazmente fixado, poderia servir de propulsão a um barco, propiciando repouso aos pobres braços de empenhados remadores. Esse é o princípio básico do funcionamento cognitivo: conhecimento gera conhecimento.

O que pudemos notar até agora? O conhecimento não se dá no vazio, nem é unívoco; é uma relação que sempre tem dois protagonistas: um sujeito cognoscente e um objeto cognoscível. Em português: um cara que observa e uma coisa que é observada. Vejam que a relação é obrigatoriamente dicotômica; um sujeito sem objeto está vagando e andando, um objeto sem sujeito é como se não existisse. Eu (sujeito) olho a pedra (objeto). Alguém (sujeito) lê um livro (objeto). Um professor ministra uma aula (objeto) a uma classe (sujeito). Aqui, temos algumas pegadinhas. O professor não é o objeto, mas o meio pelo qual o conhecimento é exposto. Mas ele mesmo pode ser objeto, na medida em que a dileta audiência passe a prestar atenção nele como pessoa, e não na informação que ele profere. Quem nunca presenciou cenas como a do aluno que, em plena aula de análise sintática, pergunta onde o professor comprou seu relógio? Ele está coligindo informações sobre o indivíduo professor, e não sobre a exaustiva exposição. Isso porque o conhecimento depende da consciência, que sempre tem uma intencionalidade (vide mais neste texto). Outra coisa: quando falamos em classe, podemos pensar em um sujeito coletivo, mas, em conhecimento, isso não existe. Tudo bem que podemos falar no saber de uma comunidade, mas, no quesito percepção, não há como fugir de indivíduos. Ainda que o objeto parta de um mesmo ponto (o professor), o receptor processa a informação individualmente, com seu próprio conjunto de conhecimentos anteriores e com as disposições de seus próprios sentidos. Por isso, toda experiência de transmissão do conhecimento é única, ainda que seja dada em ambiente coletivo. Afinal de contas, como já dissemos, em uma relação objeto-sujeito, há a parte objetiva e a parte subjetiva, ora bolas.

E aqui chegamos na tortuosa missão de estabelecer uma diferenciação entre o que é conhecimento e o que é opinião. Vamos imaginar uma situação prosaica: uma colisão à qual testemunhamos. O objeto colisão em si é um dado, é um fato, é uma informação e gera um conhecimento rapidamente intuído – um carro bateu no outro e pronto. Agora, porque ocorreu, de quem foi a culpa, o que poderia ser feito para ser evitado, tudo isso são opiniões, que derivam exatamente da individualidade que mencionei acima. E isso não é conhecimento. O conhecimento busca fatos, e não suposições. Pode até partir destas, mas não são estas. Está claro?

Uma opinião pode se transformar em conhecimento? Sim, desde que ela adquira evidências. É preciso ter em mente que, dadas as diferenças na recepção dos dados, os fatos são revestidos por aparências, que, sim, enganam. Reportando-se à colisão, uma via preferencial pode ser um bom indicativo; um semáforo quebrado, outro. Mesmo que seja óbvio um causador, não é tão certa a culpabilidade: o estouro de um pneu pode ser ocasionado por má manutenção da via, e a culpa é do prefeito. Um reparo mal feito na caixa de direção, e a culpa é do mecânico. Um bêbado circulando na via e o consequente desvio – o mesmo vale para um cachorro. Um terceiro motorista que tenha forçado uma manobra... São infinitas hipóteses que fogem aos dois aparentes únicos envolvidos.

E mesmo que haja somente os dois motoristas envolvidos, ainda assim o fato não é evidente por si só. Há as hipóteses de negligência, imperícia, falha mecânica, distração, ocorrência médica, imprudência, problemas na via, e até mesmo tentativa de assassinato ou vontade livre de causar dano ao patrimônio próprio ou de outrem, talvez até mesmo para obter a verba do seguro, vai saber. Qualquer coisa que se profira sem evidência é palpite, em especial proposições preconceituosas, como a que imputa a culpa automaticamente para uma mulher eventualmente presente. Mulher na direção, já começa a confusão.

Como transformar a opinião sobre o acidente em conhecimento sobre o acidente? Ora, procurando fundamentos, e ordenando-os de maneira lógica. Se houve uma falha mecânica, é preciso tentar localizar a peça quebrada e entender se seu defeito é significativo para o acidente; para detectar se há imperícia, um bom indicativo é verificar o tempo de carta e os tipos de infração cometidos pelos protagonistas; se supomos que o problema é na rua, é preciso localizar buracos ou faixas mal pintadas, e assim sucessivamente. Com esses elementos nas mãos – o conjunto fático e as evidências – pode-se dispor a dinâmica dos acontecimentos de maneira lógica, e se aproximar da verdade.

Neste exemplo acima, podemos observar como se aplica a Teoria do Conhecimento como um todo, e como suas sub-áreas se interconectam. A capacidade de perceber o acidente e de trazê-lo como um dado para o processo intelectual está no campo da Gnosiologia. A tradução do fato correspondente à realidade e seus nexos causais, ou seja, o conhecimento verdadeiro é tarefa da Epistemologia. E a ferramenta que dispõe tudo em seus devidos lugares é a Lógica. Traduzindo: reconhecer a existência do acidente como um fato é gnosiológico, ser capaz de compreender como o acidente factualmente se deu é epistemológico e cuidar para que a solução do problema do acidente seja corretamente disposta é lógico.

Com isso tudo, podemos concluir que a principal tarefa da Teoria do Conhecimento e de suas sub-áreas é suplantar o relativismo produzido pelas sensações humanas. Ou talvez até mais: tentar compreender se isso é possível. Tem gente grande que acha que não:


Isso porque, embora tenhamos uma boa distinção entre razão (logos) e opinião (doxa), o fato é que certas vezes a opinião “encaixa”. No exemplo do acidente, digamos que estejam envolvidos um corintiano e um palmeirense. Três pessoas opinam, com duas culpando o segundo. Mas a apuração dos fatos leva à conclusão de que o erro foi do alvinegro, que se distraiu com o celular. Tivemos uma opinião correta, mas no que ela se baseou? Se for pelo simples fato de que o motorista estava com a camiseta do clube, foi uma mera coincidência, mas que ganha força na forma de preconceito. Quem opinou desta forma, falou a verdade, mas por um mero acaso. Falta-lhe uma justificativa racional para dar base. Percebem como uma opinião acertada não corresponde a conhecimento?

Recomendação de leitura:

Um dos primeiros textos filosóficos que discute as diferenças entre opinião e conhecimento vem de Sócrates, através da hábil pena de Platão. Como é um texto curto, dá para ler de uma só sentada.

PLATÃO. Teeteto in Diálogos: Teeteto e Crátilo. Belém: UFPA, 2001

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